sábado, 5 de outubro de 2013

Lugares (1)

Está a anoitecer, e, ainda de dia, numa certa zona, com mais um canal de água pelo meio (há dezenas deles), as luzes vermelhas começam a acender. A noite começa, o fluxo de pessoas aumenta, aumenta o cheiro intenso de cannabis, aumenta o cheiro a fritos por todo o lado. De repente tudo fica enjoativo. Algumas mulheres começam a aparecer nas janelas, sob as famosas luzes vermelhas. Olho mais de perto. Passo várias vezes pela mesma rua, pelas ruas paralelas e perpendiculares. A maioria são miúdas. Daria a algumas 18 anos (não posso dar menos porque esta bela profissão lá só deve ser legal a partir dessa idade, se não dava a algumas bem menos...). E fico pasmada porque... são lindas! Caramba... parecem top models: algumas altas, todas de corpo seco e bem esculpido, com as curvas no lugar certo. Umas loiras, outras morenas. Todas com uma espécie de biquini giro e brilhante (muitos brancos ou fluorescentes) ou então de lingerie. Podiam ser a vizinha gira da porta ao lado ou a amiga estrangeira de uma nossa amiga. Das vezes que passo por elas, umas vezes olho-as na cara, nos olhos, outras simplesmente baixo os olhos. Por alguma razão sinto-me envergonhada. Não por (eu) estar ali. Mas acho que por elas. Não quero ter tom paternalista ou de compaixão beata, essas coisas. Nada disso. Mas estou de boca aberta, pasmada. Como é possível... Piscam os olhos aos homens que passam, fazem beicinho, mandam beijos. Algumas fazem poses mais ousadas. Outras provocam deliberadamente, algo obscenas, rapazes que lhes gritam algo que não percebo. Eles riem-se, falam alto, fazem-lhes gestos. Elas retribuem. Não percebo se estão mesmo divertidas e a gozar a situação ou se simplesmente tudo aquilo é pura defesa. Elas estão por detrás de portas de vidro. Ninguém lhes pode fazer mal se elas não quiserem. Vêem-se às vezes homens sentados aqui e ali a fumar. Não percebo se são proxenetas ou se são apenas alguém que as protege, algum amigo ou familiar. Provavelmente são um "ninguém". Um ninguém que simplesmente as observa, mais um cigarro, mais um charro. Todos os dias é o mesmo. Alguém sopra ao ouvido: coca... Não obrigada. Siga.
Tento abstrair-me. Visualmente é engraçado. Uma data de mulheres bonitas e novas a pavonearem-se. Dão nas vistas. A luz vermelha dá um toque de mistério, de sedução, é verdade. E continuo espantada por terem corpos tão bem delineados. Esperava travestis, mulheres mais velhas e degradadas, mulheres feias. Tento abstrair-me. Mas não consigo. Não entendo o que estão aquelas miúdas todas ali a fazer, a vender o corpo, a serem tocadas por estranhos e a executarem coisas íntimas com quem não conhecem. Pergunto-me se forem abordadas por um homem repugnante, de quem tenham nojo, se o deixam entrar. Gerem o seu próprio negócio e podem recusar quem quiserem ou são geridas e têm de receber todos? (devia ter feito o Red Light Tour e feito essas perguntas todas à ex-prostituta que faz os tours)
Passadas umas voltas vejo várias cortinas fechadas. Sinto-me estranha. À minha volta e dentro daquelas vitrines inúmeras miúdas fazem mil e uma coisas a homens velhos, novos, feios, bonitos, ricos, pobres, simpáticos, arrogantes, charmosos, pirosos, charrados, bêbados, sóbrios, etc...
Sim, já sei que é tudo legal e têm condições higiénicas bla bla bla. Já sei que a legalização da prostituição fez parte da emancipação das mulheres de lá. Fazem o que querem dos seus corpos, ganham imenso dinheiro com isso e passados uns tempos voltam para casa como e nada fosse, com a conta do banco recheada, casa nova, dívidas pagas, e prontas para um novo recomeço. Fazem o que querem e pagam impostos por isso.
Sim, não discordo da legalização (mas também não sei se concordo). Os homens (alguns, muitos, não sei) fazem-no de qualquer modo. Mas não me entra na cabeça o usar o corpo para ganhar dinheiro e sentirem-se livres por isso. Não estamos a falar de prostituição de luxo - posso estar muito errada e não conheço nada desse mundo -, mas penso que aí o nível é outro, e só está nele quem quer mesmo, quem goza a situação, quem tem maior controlo da sua vida. São situações privadas, discretas. Não são "carne fresca" em exposição em montras. Essa parte é tão, mas tão degradante. O que fazem aí miúdas? Querem ganhar uns trocos enquanto estudam? Vão trabalhar em part-time numa restaurante ou café, façam babysitting, etc etc. Porque estão ali? Porque gostam de sexo com qualquer homem? Porque têm imensas dívidas para pagar? Porque têm a família para ajudar? Porque querem ter roupas caras? Um bom carro? Uma boa casa?
Quanto ganham por noite? Gostam do que fazem ou sentem-se tão mal como eu me senti por vos ver aí? O que estão a fazer aí? Devia ter batido numa das vitrines e perguntado... Ficarei para sempre a questionar-me.
Nem tudo é "bonito". Algumas ruas perpendiculares revelam as tais mulheres "gastas" de que estava à espera. Corpos já disformes do tempo, vêm-se marcas, nódoas, peles descaídas. Numa outra rua vêem-se os tais travestis que já vira em documentários. Aqui o ar não é tão amigável e sedutor. Simplesmente esperam. Esperam pelo próximo. Noutra rua apenas mulheres mulatas ou pretas. As ruas dividem-se para todos os gostos. Mas de repente a sensação já não é tão juvenil ou erótica. Acho estas mulheres tristes. As outras da rua principal ainda fingem. Estas já não. Esperam por quem lhes irá pagar mais uma noite.
Não sei ainda o que pensar desta visão. Divido-me entre o choque de ver aquele "espetáculo" e a excitação de ver a rua das "prostitutas legais". Deixem-me digerir a coisa.

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